Brasil

Metanol: como lobby das indústrias derrubou sistema de monitoramento de bebidas alcoólicas

Indústrias recorreram ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário para desligar — e manter fora de funcionamento — o sistema de controle

Os episódios assustadores de mortes e sequelas graves em decorrência de contaminação por metanol presente em bebidas alcóolicas trouxe à tona uma série de questionamentos sobre a confiabilidade do mercado e a capacidade dos órgãos de fiscalização de rastrear a origem das garrafas.

Enquanto afirmam publicamente que buscam “saídas” para aumentar a segurança, a indústria de bebidas atua de forma ostensiva para manter desligado um sistema que controlava a produção dentro das fábricas. O lobby já recorreu a todos os três poderes, com investidas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.

O tema é discutido no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal de Contas da União (TCU), e a indústria de bebidas tenta emplacar medida provisória (MP) para enterrar de vez o controle. O argumento é que ele é obsoleto e oneroso.

Vinculado à Receita Federal, o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) foi regulamentado em 2008. Com o objetivo de evitar a evasão de impostos, monitorava a fabricação e a origem das bebidas a partir de equipamentos instalados nas linhas de produção das bebidas nas linhas de produção.

As bebidas eram marcadas com com uma assinatura digital, o que permitia o rastreamento individual das garrafas. O código contava com informações sobre o fabricante, a marca, a data de fabricação, entre outras. O sistema, no entanto, foi desligado oito anos depois, em 2016.

O sistema tinha como objetivo inicial monitorar a produção de cervejas e refrigerantes. Mas em 2011, uma alteração nas regras do passou a abranger também a categoria de “outras bebidas”, o que poderia incluir destilados, entre outros. O custo do funcionamento do Sicobe era pago pelas empresas, calculado com base no número de unidades envasadas. O valor, pago à Casa da Moeda, podia ser abatido de impostos posteriormente.

A interrupção do sistema foi justificada pelo alto contudo. Segundo a Receita Federal, o valor anual era de cerca de R$ 2,5 bilhões de reais em valores corrigidos. Para a Receita, “os custos eram desproporcionais aos benefícios, representando aproximadamente 10 vezes mais que sistemas similares.”

Logo após o Sicobe ser desativado, em 2016, a suspensão foi considerada irregular pelo TCU, que apontou vícios no processo de desligamento do sistema. O caso foi parar no STF após a União apresentar mandado de segurança.

Em abril deste ano, o ministro Cristiano Zanin suspendeu as decisões do TCU que determinavam o retorno do Sicobe. Zanin argumentou que a Receita tem competência legal para definir as obrigações acessórias no âmbito tributário. O entendimento vale até o julgamento definitivo do mandado de segurança.

Em meio à crise gerada pelos episódios de contaminação com etanol, o julgamento foi retomado na última sexta-feira (17/10). O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator, e votou para manter suspenso o sistema de controle. Nesta segunda-feira (20/10), o ministro Luiz Fux pediu vista. Assim, o processo fica suspenso por até 90 dias.

Paralelamente, a indústria articula uma medida provisória (MP) para enterrar de vez o sistema. Como mostrou a coluna, o texto da MP foi apresentado pelos principais representantes do setor em reunião, na Esplanada dos Ministérios, no edifício sede do Ministério da Fazenda.

No dia 3 de abril, às 14h, o secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, recebeu em seu gabinete líderes do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv) e da Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir), além de diretores de duas das maiores cervejarias do país: Heineken e Ambev.

De acordo com fontes, os industriais saíram de lá com uma promessa. O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, que também estava no encontro, teria afirmado que, “na gestão dele, o Sicobe não volta”. A reunião foi registrada na agenda pública de Barreirinhas. O campo “objetivos”, no entanto, ficou em branco. A articulação conta com o val de parlamentares de diferentes partidos e bancadas.

Suíça x Japão

O contrato para operar o Sicobe, estimado em R$ 1,8 bilhão por ano, também é alvo de disputa. Pelo menos duas empresas internacionais estão na briga: a suíça Sicpa — que operava o sistema até o desligamento — e a japonesa Dentsu Tracking.

Em 2024, vazou um áudio de um lobista da Dentsu, gravado na saída de uma reunião na sede da Receita Federal. No registro, ele afirma que a secretária-adjunta da Receita Federal, Adriana Gomes Rêgo, vaza informações para seu marido, Paulo Ricardo de Souza Cardoso, que, por sua vez, passaria os relatos para a empresa.

Na ocasião, a Receita Federal reagiu com uma nota em que argumenta a “inviabilidade” do Sicobe. “O custo do religamento é estimado em R$ 1,8 bilhão anual, para uma arrecadação tributária de aproximadamente R$ 13 bilhões em 2023. Esse valor é superior a tudo que a Receita Federal gasta com todos os demais sistemas que controlam toda a arrecadação federal. É superior ao orçamento de diversos ministérios do Governo Federal”, escreveu a Receita no documento. Adriana continua no cargo.

O que diz a Receita Federal

Em meio à crise, a Receita Federal divulgou uma nota afirmando que “é falsa a correlação entre a criminosa adição de metanol em bebidas destiladas disponibilizadas a consumidores com o desligamento do sistema de monitoramento denominado Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas)”.

“O controle de destilados, como vodka, gin, whisky, é usualmente feito pela utilização de selos, impressos pela Casa da Moeda e aplicados nas tampas das garrafas, e que não têm relação, nem se confundem com o Sicobe”, argumenta.

O esclarecimento continua: “O Sicobe era um sistema usado pela Receita Federal que acompanhava, por meio de máquinas instaladas nas fábricas, a quantidade exata de cervejas, refrigerantes e águas produzidas, além do tipo de produto, da embalagem e da marca. É importante lembrar que o Sicobe não avaliava a qualidade das bebidas, apenas media o volume produzido”.

Metrópoles

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